O CANTO DA SEREIA EM MARMITEX

Recebi com curiosidade uma caixa grande dos Correios , com 27 cm x 22,5 cm x 13,5 cm. A designação do seu tamanho não é fortuita, pois fez aumentar a curiosidade, constatada sua leveza, a ponto de imaginar que nada havia nela. Seria possível, assim pelos Correios, um vazio, o nada, em uma caixa, quando nelas cabem tanta coisa como a imaginação, uma alma, a voz de uma sereia…? Veio para mim, isso que se reúne nesse nome, esse destinatário que por habitual me é um estranho e mais estranho se transpareceu mediante um substantivo adjetivante aplicado ao nome que se designa como endereço desse estado indiscernível que aparento ser aos que dizem que me veem: “DESTINATÁRIO: POETA ADEMIR DEMARCHI. Eis que a esse se aplicou a sina de que há para as coisas do mundo um destino que chega até ele, levando à temível indagação: haveria também, para ele, como para as coisas, um destino? E quanto a esse substantivo adjetivante, o que significa? Ao pegar a caixa e ler as palavras “destinatário: poeta”, respondi prontamente ao carteiro: “Não, não é aqui, não, não sou eu, deve ser engano”. O carteiro insistiu: “Mas essas outras que estão em suas mãos, que acabei de entregar contêm o mesmo nome…” Li de novo a etiqueta na caixa e, sim, havia uma coincidência e diante da obstinação do carteiro em se livrar daquele peso, não me restou alternativa que me apropriar da caixa e carregá-la com o desconforto do vazio transmitido através da leveza. Em casa, munido de estilete, contendo os ímpetos de agir como um antigo cachorro e esmigalhar aquele corpo concreto mas vazio, passei pelos vãos a lâmina: dentro havia o espanto de um envelope totalmente branco com algo apresentando volume dentro dele. Meu nome de novo, apenas ele, sem aparatos, aparecia escrito à lápis ao lado de três grampos que imaginei um cuidado talvez necessário para evitar que o que havia sido colocado dentro escapasse, voasse, se volatilizasse. Extirpados os grampos, abri e vi uma embalagem de alumínio, dessas de marmita de preso, muito apropriada à minha condição de presidiário da quarentena, que, retirada, li: “Marmitex Poesia”. A inscrição estava na tampa, lacrada à máquina de fechamento desses recipientes. Retirada a tampa, uma dedicatória com o ruído de efeminização involuntária através do artigo “a” em lugar da proposição “para” diante do nome, estranhamento logo afastado diante da constatação do recipiente cheio de letras “s”, feitas de isopor. Seria isso o alimento para mastigar? Um amontoado de isopor insosso que a mim remetiam, aquelas letras, na falta de outro sentido, a… sereia? Retirados os “ss”, no fundo do marmitex encontrei um poema, escrito a mão com caneta, desvendando um destino final: “não abdico/ ao que sinto// seja beira de abismo/ ou efeito de absinto”. Com a numeração “01/02E 04/100” e a assinatura “Carlos Barroso 03/8/20”, desfoquei o olhar e vi minha imagem fosca e indistinguível refletida como um fantasma no fundo do marmitex.

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