→ Mínima lâmina, de Carlos André [São Paulo: Editora Córrego, 2020]

Os poemas de Mínima lâmina, de Carlos André chamam atenção pelo que sinalizam já em relação ao título: dizer com um mínimo de palavras e dizer de forma contundente. Pode-se perceber certa relação com João Cabral, por certo cerebralismo de corte na linguagem, assim como com Drummond, pela forma de abordagem dos temas ou pelo memorialismo, características apontadas por outros leitores impregnados por esses autores. Essas relações, porém, pouco importam, já que o resultado é potente na assimilação desses universos poéticos, distanciando-se do versalismo cerebral de Cabral e da verbosidade de Drummond, resultando em uma experiência de limagem do texto e sintetização expressional que alcançam singularidade nesse primeiro livro do autor.
Um dos poemas, que pode ser apontado como modelar dessa escrita, é o da página 18, sem título, que transcrevo:
o avião chegou na minha cabeça
que eu brincava heroína
a mãe gritou da porta morte
que o pai nunca vinha
e ele nunca mais que veio
Em poucas imagens, ações e personagens marcantes, o autor alcança um impacto no leitor não apenas pelo que diz, mas, sobretudo, pela forma como se expressa, através do uso de metáforas (no caso, por exemplo, a palavra “avião) ou da junção de palavras em um verso que remetem ou poderiam pertencer a outro verso, causando uma impressão de escrita truncada, multiplicando sentidos na leitura sensorial: “na minha cabeça eu brincava”; “heroína a mãe”; “porta morte”; “morte do pai”; “o avião chegou… não veio”.
Essa singularidade de escrita, de composição de versos com palavras expressando sensações de deslocamento (no verso), truncando a escrita e multiplicando as possibilidades de interpretação, logo de percepções no leitor, é mais evidente nesse poema. Em minha leitura restou a sensação de que poderia ter sido um caminho potente em todo o conjunto do livro, o que não aconteceu, uma vez que prevaleceu na escrita a versificação mais direta, que me parece um fator diluidor dessa potência assinalada. Vejo nesse aspecto uma qualidade que se deve ressaltar, pois seria um modo de ir contra a escrita escorreita, normatizada e, diria, pasteurizada, marca da massiva poesia contemporânea que já quase não pensa mais na linguagem expressiva e tão somente se joga a dizer como um sintoma, livre de viroses e diatribes singulares da linguagem poética. Assim, tendo conseguido uma singularidade expressiva como assinalado, pareceu-me que o autor poderia ter ido ainda mais longe explorando esse aspecto. Trata-se, logicamente, de uma sensação de leitor, pois a assinalada síntese de escrita apresentada por Carlos André dá conta de alcançar outros ótimos poemas.
Nessa experiência de leitura, no entanto, ficou ecoando a reação causada por aquele poema da página 18, que motivou ler o livro de outra forma. Assim, o poema seguinte, da página 19, por parecer regular em seus versos, diferentemente do anterior, causou estranhamento, dando ímpetos de meter-lhe outra lâmina. Eis como está no livro:
nada acontecia em nepomuceno
mesmo o galo às quatro horas
o leite mugindo na porta
deus passeando nas carroças
eram extensões fugazes
da mesma calma (e)terna hora
Montesquieu, lembrado por Voltaire em seu Dicionário filosófico, em verbete sobre os letrados, “disse que os citas furavam os olhos de seus escravos para que se distraíssem menos enquanto batiam a manteiga”… Não resisto, aqui, de lembrar também os empoderamentos mefistofélicos dados a quem lê por um leitor endiabrado como Borges, que falsificava deliberadamente suas traduções e interpretações, ou mesmo um aplicado Iser (O ato da leitura) segundo o qual “a obra literária se realiza na convergência do texto com o leitor”, ou que “A obra é o ser constituído do texto na consciência do leitor”, ou, ainda, Blanchot (O livro por vir) que disse que “A leitura faz do livro o que o mar e o vento fazem da obra modelada pelos homens: uma pedra mais lisa, o fragmento caído do céu, sem passado, sem futuro, sobre o qual não se indaga enquanto é visto. …O livro tem, de certo modo, necessidade do leitor para tornar-se estátua, necessidade do leitor para afirmar-se coisa sem autor, e também sem leitor”, observações essas que já garantem hoje em dia que a manteiga pode desandar à vontade mesmo pelos mais cegos leitores, desde que tenham o ímpeto desejado em todos os poetas, próprio da poesia, de ir contra.
Assim é que, cegado por essa fantasia de leitor que, mesmo cego e podendo desandar a manteiga, apropriei-me da lâmina e tendo-a passado em alguns poemas, remontei-os segundo aquela ideia de truncamento contra a escrita regular. O há pouco citado poema ficou, então, assim:
nada acontecia
em nepomuceno mesmo o galo
às quatro horas o leite
mugindo na porta deus
passeando nas carroças
eram extensões fugazes
da mesma calma
(e)terna hora
Outro poema, apresentado no livro assim:
o elefante
último habitante
de uma terra vencida
o elefante
nunca de repente
como eternamente
crescesse a tromba
o elefante
nem um transe
nem um dia
o elefante
nem existe
Ficou assim:
o elefante último
habitante de uma terra
vencida o elefante
nunca de repente
como eternamente
crescesse a tromba
o elefante nem um
transe nem um
dia o elefante nem
existe
O autor deverá achar horrível, outros leitores deverão achar um exagero, porém posso dizer que o leitor se divertiu com a manteiga.
[23/6/2021]