É emocionante depararmo-nos, na tese de doutoramento na USP escrita por Anelito de Oliveira sobre Cruz e Sousa, com a dedicatória que ele faz à sua mãe, em que, imediatamente informa que, apesar da dedicatória, ela estaria impossibilitada de lê-la porque não teve direito à alfabetização… Essa manifestação, ainda que possamos nela ver uma angústia, não é um desabafo, mas antes uma postura crítica que esse poeta tem com a vida, expressa na escolha temática da tese mas sobretudo em sua poesia, ao saber que luta contra a exploração, violência e o analfabetismo generalizado que é ainda mais nefasto com a população negra à qual ele pertence. A contundência da dedicatória é também a marca da sua poesia, escrita contra esse estado de coisas que é o país, mesmo que sua poética varie incansavelmente de temas, sendo marcada por um tom metafísico que nasce do inconformismo, expresso em cada poema. Se os analfabetos, que são quase 80% da população, não podem ler, a situação é ainda mais paradoxal quando o poeta constata, no poema “Au lecteur”, remetendo a Baudelaire, que entre os que leem estará submetido “à tirania do silêncio” e de jamais ser compreendido, numa ampliada forma de violência. Isso, porém, não o cala, não o impede de escrever continuamente, tal como o leitor privilegiado que o alcance pode constatar na série que vem publicando pela Orobó Edições, Acontecimentos criativos, composta por conjuntos de livros que reúnem sua produção poética, como em Transtorno [1993-1996]; Mais que o fogo [1997-2005]; e A ocorrência [2002-2003], que se somam a outros livros como Lama (2000) e Três festas A love song as Monk (2004). A seguir, três poemas dos livros de Acontecimentos criativos.
BRANCURA NEGRA
estou branco
muito mais branco
profundamente branco
mais
muito mais
amargamente mais branco
que esta folha de papel tão branca sobre a mesa
a emitir incansavelmente seus brancos
e me lembrar que estou branco
como a tristeza mais negra
da sua brancura tão branca
neste mundo
a esta hora da tarde
de mais nada
[de Mais que o fogo]
*
AU LECTEUR
Preciso me expor a esse
Ridículo, preciso me
Deixar estar assim esse
Lixo que sei que sou,
Que somos, no fundo,
Neste esconderijo onde
Nos refugiamos, sim,
Preciso trazer à luz
Esta escuridão de que
Sou feito, preciso me
Deixar despencar do
Alto deste desamparo,
Desabafar no chão tal
Qual caixa de dejetos,
Sem adjetivos para
Revestir esta fraqueza,
Esta tristeza, esta cruel
Avareza, inteiramente
Nu, despojado como
Quem prestes a des-
Aparecer, preciso, sim,
Expor as vísceras aos
Abutres na manhã de
Uma livraria, preciso
Me entregar, deixar-me
Estragar entre verbos e
Vermes ao som da
Gritaria, da zombaria,
À tirania do silêncio,
Preciso me expor ao
Ridículo de ser lido
E jamais compreendido
[De A ocorrência]
*
BRASÍLIA BLUES
A um irmão morto
Abril é o mais cruel dos meses
+
Aberto naquela tarde
Como um buraco
De rua
No peito
Tarde fechada de abril
Você morto
Estre mortos
Você apagado
Como um palito já usado
Triste
Como qualquer coisa
Que já foi acesa
Agora queimada
Você morto
Sob um abril fresco
Feito para corações burgueses
Que passam tranquilos
Sorrindo diamantes
Pássaros de seda
Indiferentes nobres
Porcos engravatados
Protegidos em seus
Guardachuvas de rodas
Brilhantes
Abril é o mais cruel dos meses
+
Girando numa terça-feira
Como um elefante ferido
Escoando
Como quem esquia
Numa nódoa de lama
Abril bêbado
Sonolento
Lento
Arfando
Entre corredores de concreto armado
Um bicho sujo
Caminhando
Quase morto
Para a sua morte
Debaixo
Do vômito de uma nuvem de insetos
Abril nosso rosto
De um país
De merda
Um mês fétido
Estômago
-esgoto
Um cão
Esmagado
Latindo latindo latindo
O fogo da fome
A fome do fogo
Dentro de nós
Abril é o mais cruel dos meses
+
Você frio
Como qualquer coisa
Que já morreu
Náufrago
Recém-expulso do mar imundo da vida
Estendido numa mesa
Como uma roupa velha
Num jirau
Em engenheiro Navarro
Oco do mundo
Sem glória
No poço fundo
Calabouço da história
Abril seco
Como um milharal
Sugado pelo sol
De agosto
Exalando a brisa sôfrega
Do sopro
Final
Você exposto no espaço
Da malandragem
Que nos condena
À privada da vida
Um morto banal
Abril é o mais cruel dos meses
+
Rolando úmido
Numa tarde de nada
Você massacrado
Abandonado condenado
Sol murcho
Que nunca mais brilhará
Perdido
Esquecido
Na selva do capital
Nu
Quase azul
De gelado
Tratado como um
Objeto
Qualquer
Um
Por uma tropa
De carniceiros brancos
Posando de anjos
Nos seus jalecos brancos
Abril é o mais cruel dos meses
+
Com os olhos sangrando
Sonhos esfaqueados
Agonizando
Na desgraça do sistema
Você peixe morto
Estragado
Resto de ceia
De deputado abastado safado
Você fruto azedo
Levado ao lixo
Como lixo
Você bicho inofensivo
Bicho pisoteado
E virado
Lixo
Você
Eu
Nós
Naquela tarde
Um
Ermos
No cemitério de nós mesmo
Na Val-
Paraíso do inferno
Sob um crepúsculo chuvoso
Que nunca terá fim
[De Transtorno]
→ OLIVEIRA, Anelito de. Acontecimentos criativos: Transtorno [1993-1996]; Mais que o fogo [1997-2005]; A ocorrência [2002-2003]. Belo Horizonte: Orobó, 2012.